Enriquecimento curricular… “á la lettre”
“Deus escreve direito por linhas tortas”
Compete às Câmaras Municipais o lançamento de concursos para provimento dos lugares de docência no que às actividades de enriquecimento curricular do 1º ciclo do ensino básico diz respeito. Os concursos são públicos obedecendo, por isso, a todos os trâmites legais exigidos para qualquer concurso público, e são realizados antes do início do ano lectivo de forma a garantir que os alunos usufruam, na totalidade, das mais-valias dessas actividades (ou pelo menos assim deveria ser).
Os candidatos, já se sabe, são professores desempregados. São aqueles que ficaram excluídos de colocação nos concursos para os 2º e 3º ciclos do básico e para o secundário, bem como habilitados noutras áreas que não aquelas que permitem uma profissionalização no ensino, e ainda uns quantos habilidosos nas correspondentes habilidades de que são sujeitos.
Em consequência disto, está o funcionamento normal das actividades de enriquecimento curricular sujeito aos fluxos de colocação de professores pelo Ministério da Educação (ou directamente pelas escolas conforme seja o tipo de concurso), de modo que é frequente (caso, desde logo, previsto na legislação) exigir-se a substituição de professores nas actividades de enriquecimento curricular do 1ª ciclo do básico devido ás demissões dos, até então, titulares da função.
Outro facto, também ele previsto na Lei, é aquele que dá conta, tanto de um possível esgotamento de candidatos nas listas de candidatos nas respectivas Câmaras Municipais e para as respectivas actividades de enriquecimento curricular, como da consequente necessidade de lançar uma outra fase de concurso, ou um novo concurso, como preferirem chamar-lhe. Com efeito, a Lei permite novos concursos nestas situações só que, inexplicavelmente, pelo menos à primeira vista, instituiu um limite de três concursos, findos os quais não é possível obter mais professores de uma certa actividade de enriquecimento curricular.
Face a uma situação deste tipo, na qual foram esgotados os concursos, existem uma lista vazia e uma necessidade de substituir um dado professor, de uma dada actividade de enriquecimento curricular. Só que, não sendo possível substituir o professor, resta apenas a solução de substituir a actividade de enriquecimento curricular para a qual não existem mais professores, por uma outra para a qual existam candidatos em lista, ou então para a qual seja ainda possível lançar outro concurso.
Vejamos! Se já não seria nada boa a solução de apresentar um terceiro professor, num mesmo ano lectivo, (ou inclusive dentro do mesmo período), às crianças de uma dada turma, que se poderá dizer da situação em que se lhes apresenta a actividade iniciada como terminada e uma outra para iniciar com um novo professor?
De facto parece impossível que ninguém se tivesse apercebido da possibilidade (mais que provável) de ocorrerem situações deste tipo. Com efeito, nem o escritório de advogados que redigiu a lei se apercebeu do pormenor (o que não deveria acontecer dados os honorários que cobram por tais redacções) nem tão pouco o fizeram os deputados da Nação antes de aprovarem o texto legal, se bem que no caso destes últimos, outra coisa não seria de esperar, pois se as criaturas fossem capazes de prever uma situação assim, ou de detectar uma falha no texto legislativo, também não seria necessário despender rios de dinheiro para fazer leis em regime de outsourcing.
Em resultado de todo este “baile mandado” no qual não se sabe nem quem é o mandador nem quem é o mandado, vão ficando os alunos sem aulas e gente que quer trabalhar sem trabalho (ah… e a Câmara sem algumas despesas).
Só para se ter uma pequena ideia vejamos a seguinte situação. Numa dada escola as actividades de enriquecimento curricular apenas começam em Outubro, facto decorrente de uma qualquer disfunção processual, que nunca se chega a saber qual foi, mas que, isso sim sabe-se com certeza, permitiu á respectiva Câmara Municipal poupar uns agradáveis e bem-vindos milhares de Euros.
As crianças do 4º ano, iniciam o ano lectivo com as actividades de enriquecimento curricular de Inglês, Ciências Experimentais e Ginástica. Logo em Outubro ficam sem professor de Inglês que é substituído de imediato. No início de Novembro perdem o professor de Ciências que não foi possível substituir de imediato já que foi necessário lançar novo concurso.
A substituição ocorreu passadas duas semanas apenas, o que permitiu á Câmara poupar umas centenas ou milhares de euros, dependendo do número de ocorrências do mesmo tipo, sendo que permitiu igualmente a subtracção dos alunos ao inquestionável e inalienável direito às aulas, aliás propostas pelo próprio sistema e não pelo aluno.
Ainda em Novembro vai-se embora o professor de Ginástica que é substituído imediatamente. Chega Dezembro e, de uma só vez, a turma perde os professores de Ciências e de Inglês. Para ambas as situações, foi preciso lançar novo concurso, pelo que se passaram mais duas semanas sem professor, desta vez a duas das actividades. Escusado será dizer que a Câmara poupou mais umas centenas ou milhares de euros e os alunos ficaram sem as aulas a que tinham direito. As substituições chegaram, todavia, mal o menos, a tempo de preencherem as fichas de avaliação, o que já não foi mau de todo.
O pior veio em Janeiro quando se foram embora os professores todos, pois foram todos colocados pelo Ministério noutras escolas e noutro nível de ensino. O professor de ginástica apareceu uma semana depois, mas dos professores de Inglês e de Ciências não houve notícias pois já se tinham realizado todos os concursos e as listas estavam vazias. Vai daí, e há que substituir as actividades iniciadas por outras. Então no lugar de Inglês passou a haver Educação Musical, e no lugar de Ciências passou a existir Expressão Dramática.
Terminado o processo, por enquanto, e fazendo as contas, a turma do 4º ano já vai em 5 actividades de enriquecimento curricular e com 11 professores diferentes. É, sem margem para dúvidas, caso para dizer, e mesmo realçar, o quão bem aplicado foi esta denominação às respectivas actividades, pois que se isto não é um exemplo acabado e perfeito de enriquecimento curricular então ninguém saberá explicar melhor o que se entende ou deve entender por enriquecimento curricular. Mas já agora aproveito para lançar o desafio: não seria oportuno alterar a dita denominação de modo a corresponder tout court àquilo que é realmente a natureza das actividades? E, assim sendo, não seria mais apropriado, de futuro, mudar a denominação para actividades de enriquecimento curricular, social e interpessoal (já para não falar do enriquecimento da Câmara).
E não é que, sem querer (ou talvez não) as actividades de enriquecimento curricular acaba por ser verdadeiramente enriquecedoras, muito mais enriquecedoras do que, alguma vez o obtuso legislador (ou melhor o obtuso aprovador de leis feitas) poderia ter imaginado. E não será caso para dizer que talvez esteja, justamente, aqui a justificação que faltava para os exorbitantes honorários dos fazedores de Leis?
Bem-aventurado e abençoados sejam os fazedores de leis e comedores do erário público, bem como os ignorantes e incompetentes aprovadores das respectivas. Que seria de Portugal sem a competência dos primeiros e a incompetência dos segundos.
Ruílhe, 30 de Janeiro de 2009
António José Abreu da Silva
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