Um aluno excepcional para um país excepcional
Quando, em 1988, me candidatei à universidade, terminado o 12º ano, não existiam, como depois passaram a existir, distribuídos gratuitamente com jornais de referência em jeito de suplemento, ou então planificados e editados pelo ministério da educação, guias completos sobre o sistema de ensino superior português. Em função disto, era muito mais difícil estar e permanecer informado sobre as particularidades das diversas instituições de ensino superior e técnico, bem como dos respectivos cursos e suas organizações curriculares.
No entanto, nesse tempo, apesar de ser mais trabalhoso porque obrigava a investigações cuidadas e exaustivas, quando um aluno entrava para um curso superior, sabia á partida quais as disciplinas que constavam do plano curricular do mesmo, qual a sua disposição ao longo do mesmo, qual a carga semanal horária respectiva, qual o peso a nível de créditos no sistema de creditação internacional, bem como muita outras informações sobre o curso e as respectivas disciplinas.
Frequentei a universidade durante 19 anos (de 1988 a 2007) e em 4 cursos diferentes, no entanto, sempre soube em cada caso, quais as disciplinas do curso, e em que ano as deveria frequentar, e mais ainda, nunca tive dúvidas, acerca do momento em que estava na posse de todas as condições de atribuição do grau de bacharel, de licenciado ou de mestrado e dos momentos em que me faltava este ou aquele requisito (leia-se, esta ou aquela disciplina) para que pudesse ser-me concedido determinado grau académico, ou diversamente, se faltava, e o que faltava, para poder ser avaliado em cada uma dessas mesmas disciplinas.
Foi com muito espanto que acompanhei a polémica sobre a concessão do grau de licenciatura ao Sr. José Sócrates. Tal caso, foi apresentado como digno de suscitar diversas incongruências e como tal de ser susceptível de esconder diferentes e graves irregularidades.
O caso foi falado, explorado, explicado, comentado e concluído. No fim considerou-se que, das duas uma, ou o caso foi limpo e transparente para além de legal, ou então foi justamente o contrário, e penso assim porque de facto não houve qualquer consequência legal decorrente deste assunto. Ora isto já é suficientemente grave num estado de direito, ou seja, suscitado o problema e verificada a pouca transparência do mesmo, nada foi feito, nenhuma diligência por quem de direito foi accionada para que o caso fosse explorado, investigado para que daí se retirassem as respectivas consequências.
Pode parecer um preciosismo da minha parte, ou então um excesso de curiosidade com origem num treino ou tendência para tratar cientificamente os assuntos, mas creio, (apesar de tal apreciação ser suspeita em causa própria), que não é esse o caso, pois estou em crer que a atribuição de um grau académico, seja ele qual for, não é um assunto meramente académico e como tal confinado as paredes da universidade, mas constitui-se, total e integralmente, como um facto social, e como tal sujeito ao escrutínio das estâncias que têm por natureza a fiscalização dos actos sociais, a respectiva apreciação e consequente penalização ou não, conforme o caso.
Em todo o caso, o assunto parece ter ficado resolvido para a opinião pública que ficou a saber como se processou todo o esquema mas que, inacreditavelmente, depois de tomar conhecimento dos factos, assumiu-o como normal. Portanto, a opinião pública queria saber como Sócrates se licenciou, mas pouco ou nada estava interessada em saber se a concessão do grau foi transparente ou legal.
É um facto que a opinião pública em geral se tornou, nos últimos anos cada vez mais superficial e efémera. Os assuntos tem um timing, uma duração, a partir da qual já não faz qualquer sentido falar neles ou aprofundar pormenores acerca dos mesmos. Ou seja, levantada a questão, faz-se um grande alarido e depois, face aos resultados cada um acredita no que quiser ou no que lhe mais convier. Uns acreditarão na honestidade do Sr. Sócrates e dos outros implicados bem como na legalidade do processo e, diga-se, mesmo que houvesse provas palpáveis e indesmentíveis sobre a imoralidade dos intervenientes e ilegalidade do processo, nada nem ninguém os levaria a deixar de defender o sujeitos e o processo. Por outro lado, uma outra corrente engloba todos os que pensam justamente ao contrário e assim continuariam a pensar mesmo que fossem indesmentíveis as provas em contrário.
Cada um é livre de pensar o que quiser sobre quem e o que quiser, no entanto duas notas devem ser registadas a este nível.
Em primeiro lugar a comunicação social e os jornalistas em particular têm responsabilidades acrescidas no que concerne á informação dos cidadãos, mesmo que estes façam usos ilegítimos da mesma, ou seja que as não utilizem para moldar os seus juízos e que as atropelam nas suas apreciações. A responsabilidade dos jornalistas não se mede pelo uso que os cidadãos fazem das informações providenciadas mas sim pela informação que são capazes de providenciar.
Em segundo lugar, as estâncias legalmente competentes para zelar pela integridade jurídica e moral de uma nação, não podem ficar satisfeitas, perante uma presunção de ilegalidade, com um simples apaziguamento da ebulição social originada em redor de um acto social qualquer que ele seja, mas têm a obrigação legal e moral de investigar até ás últimas consequências o sucedido, assim como apreciar os trâmites implicados, e ajuizar, com todas as consequências praticas e objectivas, os factos referidos aplicando a lei em vigor.
Com efeito, a responsabilidade dos agentes da justiça nãos se mede pelo saciedade subjectiva e colectiva perante um dado facto, mas sim pela aplicação da lei em toda a sua extensão e profundidade. Não basta que a opinião pública se desinteresse pelo caso para determinar que a justiça foi efectuada tanto quanto possível. Se assim fosse nunca nenhum caso ficaria resolvido pois bastaria um penalti por assinalar em cada domingo para que tudo o resto fosse esquecido.
Despoletado que foi o caso pareceu-me ser firme intenção de quem o divulgou e investigou que o mesmo vivia em terrenos alheios á legalidade e moralidade ou pelo menos haveria sérias indícios que nesse sentido apontavam. Eu não sei se tudo foi legal ou não, aliás acho que ninguém sabe, ou melhor ninguém do grupo de todos aqueles que não andaram a investigar o caso sabem, sendo que os que o investigaram sabem muito bem se houve ou não ilegalidade, e por isso não deixa de ser estranhíssimo que nunca se tenha decidido, nas estâncias competentes se realmente tal acto constituiu um ilícito ou não e daí não se tenham deduzido as devidas consequências.
Afinal em que ficamos? O sr. José Sócrates recebeu uma licenciatura sem ter aprovado nos requisitos exigidos para tal? Ao sr. José Sócrates foi concedido o grau de licenciado uma vez que aprovou em todas as provas exigidas, porém estas foram diferentes daquelas que são normalmente e regulamentarmente exigidas aos restantes alunos, ou seja foram alteradas para corresponderem às diferentes (para não dizer limitadas) competências do aluno?
Seria bom que ficasse esclarecido, por quem tem o dever e a obrigação de esclarecer se o sr. José Sócrates é licenciado porque era membro de um governo ou não? E se qualquer outro aluno em circunstâncias idênticas obteria o referido grau ou não? No que me concerne não conheço nenhuma legislação ou regulamentação que confira tratamento especial a membros do governo em questões de avaliação no ensino superior, mas não digo que não exista, pois neste país tudo é possível, ou não seria a primeira vez que uma nota de um qualquer ministro ou secretário de estado num post it colorido se torna lei da república sem ser aprovada no hemiciclo.
Seja como for há coisas que não batem certo nesta história.
Em primeiro lugar, porque é necessário que venha um reitor informar um aluno que deveria frequentar e aprovar a mais uma disciplina para poder adquirir o grau de licenciado. O aluno não conhecia o plano curricular do curso? Porque haveria alguém se solicitar um diploma se sabia que lhe faltava uma disciplina? Seria, com certeza um aluno muito distraído. Se eu fosse reitor desconfiaria da credibilidade de tal aluno e ainda desconfiaria mais se ele se me apresentasse como ministro da república. Eu diria que estaria perante um caso de abuso de poder ou então de tentativa activa de corrupção por uso indevido de estatuto social para obter um benefício ao qual não tinha realmente direito.
Em segundo lugar, o aluno requer uma conversa com o reitor para receber explicações sobre o que lhe faltava para poder ser reconhecido como licenciado. Não lhe bastaria consultar o regulamento da escola, inscrever-se na referida disciplina, frequentá-la, prestar provas e aprovar, e depois sim, pedir o diploma? Será isto ignorância crónica? Ou outra vez abuso de poder e tentativa de suborno e corrupção?
Em terceiro lugar, o aluno inscreve-se para frequência da disciplina, não consta a sua presença em qualquer aula e para cúmulo o professor que o aprova na referida cadeira não é o professor titular da cadeira, mas sim o próprio reitor da universidade, que por sinal é seu amigo, tendo entre eles havido, desde há já alguns anos inúmeros contactos pessoais e mais grave ainda, institucionais, incluindo questões referentes ao próprio licenciamento do estabelecimento de ensino em causa.
Será possível que o reitor nem sequer tenha as habilitações exigidas para ser titular ou mesmo assistente da cadeira em causa? E mesmo que as tenha, poderá alguém que não consta do rol dos professores de uma dada disciplina conferir aprovação a um aluno nessa mesma cadeira quando nesse mesmo ano lectivo são outros os professores da mesma?
E para terminar, porque razão o sr. José Sócrates assina o trabalho que lhe daria a aprovação ou não na disciplina e consequentemente a possibilidade de se licenciar, e por baixo da assinatura escreve em maiúscula “ministro do ambiente”. Será que ser ministro do ambiente lhe confere algum direito acrescido? Eu já entreguei muitos trabalhos a professores mas nunca escrevi por baixo da minha assinatura “oficial do exército” ou professor do ensino secundário” ou “filho de sr. fulano de tal”, ou ainda “o cardiologista da sua mãe”.
Eu não sei se todo o processo foi ilegal ou se apenas o foi em parte ou se não o foi de todo, o que sei é que a história está mal contada e muitos são os indícios que configuram corrupção e ilicitude. Portanto, se o sujeito destes actos é actualmente o primeiro ministro e na altura era ministro do ambiente, tal facto não deveria constituir motivo de inibição para os que têm a obrigação de zelar pela justiça deste país.
Ao invés deveria constituir um estímulo para a investigação ir até ao fim, pois parece-me imperativo que o bom nome e a honra de um cidadão deve ser defendida pelo estado e pela justiça sob todas as perspectivas possíveis e até ao limite do possível.
Por outro lado, a falta dessas qualidades devem ser punidas invariável e exemplarmente para que os cidadãos possam viver com a certeza de que as suas instituições funcionam para os defender, de todos aqueles que se servem da ilicitude para atingir os seus fins, sejam eles simples cidadãos ou sejam eles justamente aqueles cidadãos em quem os portugueses depositaram, generosa e gratuitamente, a sua confiança conferindo-lhes a tarefa de zelar justamente pela garantia dessa mesma justiça social.
Que melhor aplicação da justiça poderia haver senão aquela que defende ou pune o próprio responsável pela sua aplicação? Que melhor prova poderiam ter os portugueses de que a sua sociedade funcionava para além de qualquer ordem subjectiva e dentro duma igualdade e objectividade garantidas senão a punição ou absolvição do próprio responsável máximo pela delimitação da lei e pela sua aplicação?
Infelizmente, após mais este episódio só podemos ficar com a certeza de que a justiça no nosso país ainda é a mesma que vigorava antes do 25 de Abril, ou seja, á medida do réu e não á medida da lei. Será caso para perguntar porque razão tão difícil fazer justiça em Portugal? A resposta é fácil: porque não há uma, mas várias leis, já que esta é feita á medida, no tempo, e no momento, e em função de quem precisa dela para alguma coisa, seja esta o desejo ou a conveniência de quem pune, ou por outro lado a necessidade de quem não quer, e pode não querer ser punido e goza e poderes para promover ou evitar cada uma dessas situações.
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